La trahison des images de René Magritte
As evidências não são interessantes em si mesmas, mas nas consequências que delas é preciso tirar. Conheço outra evidência, que me diz ser o homem mortal. Podem, no entanto, contar-se os espíritos que daí tiram conclusões extremas. Devemos considerar como uma perpétua referência neste ensaio a distância entre aquilo que imaginamos saber e aquilo que realmente sabemos, o consentimento prático e a ignorância simulada que faz com que vivamos com ideias que, se na verdade as sentíssemos, deveriam transformar toda a nossa vida. ante essa contradição inextricável do espírito, compreendemos justamente em cheio o divórcio que nos separa das nossas próprias criações. Enquanto o espírito se cala no mundo imóvel das suas esperanças, tudo se reflecte e se ordena na unidade da sua nostalgia. Mas ao primeiro movimento que faz, esse mundo racha-se e desaba: uma infinidade de estilhaços cintilantes oferecem-se ao conhecimento. Temos de desesperar de reconstruir a superfície familiar e tranquila que nos daria a paz da alma. Depois de tantos séculos de busca, de tantas abdicações entre os pensadores, sabemos bem que isto é verdade para o nosso conhecimento. Excepção feita ao racionalistas de profissão, desesperamos hoje do verdadeiro conhecimento. Se fosse preciso escrever uma única história significativa do pensamento humano, seria necessário fazer a dos seus arrependimentos sucessivos e das suas impotências.
Com efeito, a respeito de quem ou do quê posso eu dizer “Conheço isto!” Este coração, em mim, posso senti-lo e decido que ele existe. Este mundo, posso tocá-lo e decido ainda que ele existe. Aí pára toda a minha ciência, o resto é construção. Porque, se tento alcançar este “eu” de que apodero, se tento defini-lo e resumi-lo, ele não é mais do que água a escorrer-me por entre os dedos. Posso desenhar um a todos os rostos que ele sabe tomar, e também o ardor ou os silêncios, a grandeza ou a baixeza. Mas não se podem adicionar rostos. Mesmo este coração que é o meu ficar-me-á para sempre incompreensível. O fosso entre a certeza que tenho da minha existência e o conteúdo que tento dar a essa certeza, nunca estará cheio. Serei para sempre estranho a mim mesmo. Tanto na psicologia como na lógica, há verdades mas não há a verdade. O “conhece-te a ti próprio” de Sócrates tem tanto valor como o “sê virtuoso” dos nossos confessionários. São jogos estéreis sobre grandes problemas. Só são legítimos na medida exacta em que são aproximativos.
Eis umas árvores e eu conheço-lhe a rugosidade, eis a água e eu conheço-lhe o sabor. Estes perfumes de erva e de estrelas, a noite, certas tardes em que o coração se dilata, como negar esse mundo cujo poder e cujas forças experimento? No entanto, toda a ciência desta terra não me dará nada que possa certificar-me de que este mundo é meu. As pessoas descrevem-mo e ensinam-me a classificá-lo. Enumeram as suas leis e eu, na minha sede de saber, consinto em que elas sejam autênticas. Demonstram o seu mecanismo e a minha esperança aumenta. Por fim, ensinam-me que este universo prestigioso e matizado se reduz ao átomo e que o próprio átomo se reduz ao electrão. Tudo isto é bom e espero que continuem. Mas falam-me de um invisível sistema planetário onde os electrões gravitam em redor de um núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Reconheço então que os homens se embrenham pela poesia: jamais “conhecerei” nada disso. Terei sequer tempo de me indignar? Já mudaram de teoria. Assim, essa ciência que devia ensinar-me tudo, acaba na hipótese, essa lucidez cai na metáfora, essa incerteza resolve-se em obra de arte. Que precisão tinha eu de fazer tantos esforços? As linhas suaves dessas colinas e a mão da tarde no meu coração agitado, ensinam-me muito mais. Volto ao princípio. Compreendo que, se posso apreender os fenómenos pela ciência e enumerá-los, não posso apreender da mesma maneira o mundo. Ainda que lhe acompanhasse com o dedo todos os relevos, não ficaria mais adiantado. E dão-me então a escolher entra uma discrição que é certa, mas que nada me diz, e as hipóteses que pretendem ensinar-me mas que não são certas. Estranho a mim próprio e a esse mundo, unicamente armado de um pensamento que se nega a si próprio logo que se afirma, que condição é essa em que em só posso ter paz recusando-me a saber e a viver, em que o apetite de conquista vai de encontro a paredes que desafiam os seus assaltos? Querer é suscitar paradoxos.
Possuo agora algumas evidências de que não me posso afastar. O que sei, o que +e certo, o que não posso negar, o que não posso rejeitar, eis o que conta. Posso negar tudo dessa parte de mim que vive de nostalgias incertas, salvo esse desejo de unidade, esse apetite de resolver, essa exigência de clareza e de coesão. Posso refutar tudo neste mundo que me rodeia, choca ou me arrebata, excepto este caos, este acaso-rei e esta equivalência divina que nasce da anarquia. Não sei se este mundo tem um sentido que o ultrapassa. Mas sei que não conheço tal sentido e que de momento me é impossível conhecê-lo. Que significa para mim um significado fora da minha convicção? Só posso compreender em termos humanos. O que toco, o que me resiste, eis o que compreendo. E ainda sei que não posso conciliar estas duas certezas, o meu apetite de absoluto e de unidade e a irredutibilidade deste mundo a um princípio racional e razoável. Que outra verdade posso reconhecer sem mentir, sem fazer intervir uma esperança que não tenho e nada significa nos limites da minha condição?
Se eu fosse árvore entre as árvores, gato entre os animais, esta vida teria um sentido, ou melhor, esse problema é que não o teria, porque eu faria parte deste mundo. Seria este mundo ao qual agora me oponho com toda a minha consciência e toda a minha exigência de familiaridade. Esta razão irrisória é que me opõe a toda a criação. Não posso negá-la com um risco da minha pena. O que julgo verdadeiro, devo mantê-lo. O que me parece tão evidente, mesmo contra mim, devo sustentá-lo. E que faz o fundo deste conflito, desta fractura entre mim e o mundo e o meu espírito, senão a consciência que dele tenho? Tal conflito, se eu quero portanto mantê-lo, é por uma consciência perpétua, sempre renovada, sempre tensa. Eis o que, neste momento, tenho de fixar.
E nesse preciso momento, o absurdo, ao mesmo tempo tão evidente e tão difícil de conquistar, entra de novo na vida de um homem e reencontra a sua pátria. Ainda nesse momento, o espírito pode abandonar a estrada árida e ressequida do esforço lúcido, que agora desemboca na vida quotidiana. Encontra o mundo do sujeito indeterminado, mas mesmo aí o homem entra doravante com a sua revolta e a sua clarividência. Desaprendeu a esperança. Este inferno do presente é enfim o seu reino. Todos os problemas recobram a sua agudeza. A evidência abstracta retira-se ante o lirismo das formas e das cores. Os conflitos espirituais encarnam-se e encontram o abrigo miserável e magnífico do coração do homem. Nenhum foi resolvido. Mas todos são transfigurados. Vamos morrer, escapar por meio do orgulho, reconstituir uma casa de ideias e de formas à nossa medida? Vamos, pelo contrário, sustentar a aposta dilacerante e maravilhosa do absurdo? Façamos um último esforço a esse respeito e tiremos todas as nossas consequências. O corpo, a ternura, a criação, a acção, a nobreza humana, retomarão então o seu lugar neste mundo insensato. O homem nele encontrará enfim o vinho do absurdo e o pão da indiferença de que a sua grandeza se alimenta.
Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
No termo desse longo esforço, medido pelo espaço sem céu e pelo tempo sem profundidade, a finalidade está atingida. Sísifo vê então a pedra resvalar em poucos instantes para esse mundo inferior de onde será preciso trazê-la de novo para os cimos. E desce outra vez à planície. É durante este regresso, esta pausa, que Sísifo me interessa.
Se este mito é trágico é porque o herói é consciente. Onde estaria, com efeito, a sua torura, se a cada passoa esperança de conseguir o ajudasse?
A clarividência que devia fazer o seu tormento consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.
Se a descida se faz assim, em certos dias, na dor, pode também também fazer-se na alegria.
Deixo Sísifo no sopé da montanha. Encontraremos sempre o nosso fardo. Mas Sísifo ensina a felicidade superior que nega os deuses e levanta os rochedos. Ele também julga que tudo está bem. Este universo enfim sem dono não lhe parece estéril nem fútil. Cada grão dessa pedra, cada estilhaço mineral dessa montanha cheia de noite, forma por si só um mundo. A próprialuta para atingir os píncaros basta para encher o coração de homem. É preciso imaginar Sísifo feliz.
Excertos de "O Mito de Sísifo" de Albert Camus
Sem comentários:
Enviar um comentário