...but some animals are more equal than others.” George Orwell em “Animal Farm”
Pareceu-me ser esta a altura pertinente para expor a minha teoria sobre o casamento em geral e a legalização do casamento homossexual em particular, motivada, em parte, pela recente discussão do tema e da votação que tem lugar na Assembleia da República Portuguesa no dia 10 de Outubro de 2008. Em primeiro lugar, acho que devo avisar que a minha opinião não é, julgo eu, propriamente comum. Estou longe de ser a primeira pessoa anti-casamento, eu sei. Mas se calhar não haverá muita gente que se opõe ao casamento pela mesma razão que eu.
Vamos, então por partes. Existem pessoas que são anti-casamento. Perguntam vocês “Porquê?” Na minha recente pesquisa pelo fantástico mundo virtual (a net), descobri várias razões que vou tentar resumir adequadamente.
Em primeiro lugar, para pessoas que encaram o casamento como um contrato assinado entre duas partes, dois pólos de um negócio, é correcto dizer que isso tira todo e qualquer romantismo a uma união que deve ser a de duas pessoas que se amam e que decidem partilhar as suas vidas para todo o sempre. Assim, uma união reconhecida pelo Estado e pelo Direito do país onde vivem, toma uma dimensão essencialmente patrimonial, de partilha de bens adquiridos antes e depois da união, de definição de fronteiras na utilização desses bens e de precaução no caso de um divórcio, ou seja, como garantia da posse de cada um dos intervenientes no “negócio”. Ou, como diria Miguel Esteves Cardoso, “O amor passou a loja. Foi trespassado ao pessoal da pantufa e da serenidade.” Esta posição tem, como todos sabemos, antecedentes históricos que ajudam a suportar a teoria. O casamento foi, desde sempre, uma união de famílias, de “Casas”, em que as partes que deveriam ser as mais interessadas, os noivos, não tinham, na maioria das vezes, direito a opinião ou decisão.
O que me leva a uma segunda razão para se ser anti-casamento. O feminismo. A parte que menos tinha direito a escolha num casamento era, sem dúvida, a mulher que era “entregue”, passada de pai para marido, sem ser consultada. O casamento torna-se, então, um instrumento de opressão da mulher pelo homem, um símbolo da falta de respeito dos homens e das sociedades, patriarcais na sua maioria, pelas mulheres. Ou, se não quisermos ir tão longe no tempo, podemos sempre considerar que mesmo nos casamentos em que a mulher se casava “por livre e espontânea vontade” (confesso que gosto muito dessa frase), tínhamos a imagem típica da mulher dona de casa, subserviente à vontade do marido e sem autonomia económica ou de vontades.
Poderia ainda falar de uma outra questão que parece ligeiramente desactualizada e que se prende com o simbolismo religioso do casamento. Em muitas sociedades, a existência e validade de um casamento civil só é reconhecida há muito pouco tempo, sendo que antes o casamento era imediatamente associado a uma cerimónia religiosa de união entre duas pessoas. É lógico que hoje em dia a carga religiosa do casamento tem sido aliviada e são as próprias religiões que se queixam da progressiva dessacralização do casamento. Ainda assim, se uma pessoa que se considera ateia ou manifestamente contra qualquer tipo de interferência da religião na sociedade, essa pessoa pode alegar que o casamento comporta ainda um pesado simbolismo tradicionalista religioso.
São todas excelentes razões e a das feministas é a que me aquece mais o coração, confesso. Mas eu vou um bocadinho mais longe. Analisemos as perspectivas antropológica e sociológica do casamento. Na verdade, os antropólogos nunca conseguiram definir com exactidão o casamento, precisamente porque, no seu contacto com tantas sociedades e culturas diferentes, se depararam com realidades diversas que encaram a união de duas pessoas de formas muito diversificadas. Mas, ainda assim, parece ser de comum acordo que todas essas sociedades com as quais contactaram apresentam alguma forma de união que pode ser comparada àquilo a que a sociedade ocidental chama “casamento”. Mais ou menos legal, entre duas ou mais pessoas, permanente ou dissolúvel, todas as sociedades humanas que conhecemos e compreendemos admitem que o “casamento” é algo indispensável ao bom funcionamento da sua sociedade, um elemento estabilizador, de união ou, como eu lhe chamo “a cola que mantém a sociedade unida”. Ou, citando alguém mais inteligente que eu, "The stability provided by a life-long promise of remaining together makes marriage the institution most suited to rearing and socializing the next generation of members, a necessary task if the society's norms, values, and goals are to be maintained and if the society itself is to be perpetuated.”
Ora, não sei se já reparam, mas eu não gosto muito da sociedade. De nenhuma que seja humana, que esteja ligada por laços ou normas ridículas, antiquadas e com as quais não tenho qualquer ligação afectiva. E a sociedade também não gosta muito de mim. Portanto, cada vez que eu oiço a discussão em relação à legalização do casamento homossexual, a minha primeira reacção é a de todos os outros homossexuais: trata-se essencialmente de um direito que está a ser negado a uma percentagem de cidadãos nacionais e, por conseguinte, uma discriminação e uma hierarquização da população portuguesa. A minha segunda reacção é afirmar que eu não quero, nunca quis e espero nunca vir a querer fazer parte de uma instituição defendida por uma maioria homofóbica como o tecido de união de uma sociedade à qual eu preferia não pertencer.
Ainda assim, não posso negar que foi nesta questão que me senti mais traída pelo governo do meu país nos últimos tempos. O governo socialista admitiu publicamente que a legalização do casamento homossexual não é uma prioridade ou preocupação que conste da sua agenda. E por isso, mesmo quando confrontado com a situação por outros partidos do Parlamento, recusa-se a legislar sobre o assunto por enquanto. Ou seja, os homossexuais são uma minoria da sociedade portuguesa, sobre a qual o governo não nutre qualquer preocupação mesmo quando esses indivíduos são alvos de uma discriminação que mais nenhum grupo de indivíduos sofre em Portugal. O governo não tem, de momento, qualquer preocupação em relação aos homossexuais portugueses no seu acesso a liberdades e direitos fundamentais e constitucionais. Confesso que, depois do choque inicial, eu vim a “compreender” um pouco mais a posição do governo. Eles não querem pensar nisso agora, por favor não os chateiem, não desviem a atenção do nosso dedicado governo português das matérias realmente importantes ao país. Deixem-nos escolher quando será a melhor altura para legislar sobre a questão. Afinal, somos uma democracia representativa e todos nós concordámos, ao votar nos nossos deputados, que eles têm o discernimento de decidir quais são as problemáticas mais importantes do país e a altura mais indicada para as abordar.
Aquilo que me choca verdadeiramente na atitude do governo é a forma como ignora por completo o debate (inútil, temos que admitir) que surgiu na opinião pública, nos jornais, televisões e na Internet, e que mostra que os portugueses estão preparados e com vontade para discutir uma questão que até há pouco tempo era considerada tabu. Temos finalmente uma janela de oportunidade para falar com pessoas que não são homossexuais sobre a progressiva eliminação da discriminação pela orientação sexual na sociedade portuguesa e deitámo-la fora porque o governo, de momento, não tem tempo nem vagar para falar sobre o assunto. E assim, o próprio governo perde a oportunidade de ficar na História porque agora não lhe apetece…
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